"Este homem" é António Costa, dissecado com mestria por José Manuel Fernandes no OBSERVADOR (10/10/2015) - de onde retirei algumas passagens.
Pouco mais haverá a dizer...
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Se
era difícil confiar em alguém que nem sabíamos se acreditava no seu programa
eleitoral, agora é impossível confiar num político que procura mudar as regras
do jogo apenas para salvar a sua pele.
É
verdade: os sinais estavam lá, mas não os vimos. Estavam até espalhados por
todo o país, com a palavra “confiança” escrita em letras garrafais. E porque é
que alguém tem de escrever “confiança” por cima da sua fotografia? Só há uma
resposta: porque tem um problema de confiança. De não ser visto como alguém em
que se possa confiar.
Todos
sabíamos que esse era um problema do Partido Socialista. Isto é, do PS que
chamou a troika. Do PS que, entre obras faraónicas, aumentos salariais
eleitoralistas, contas por pagar escondidas debaixo do tapete e ainda aquilo
que talvez um dia os tribunais venham a apurar, levou o país direitinho ao
encontro da quase bancarrota. O que não sabíamos era que esse era também um problema
do seu novo líder. Não percebemos que os ziguezagues da campanha não eram
apenas fruto de hesitações e incompetência, antes sinal de um estilo de
liderança em que dizer uma coisa num dia e outra no dia seguinte faz parte da
sua própria natureza.
[…]
Achámos natural que Costa
defenestrasse Seguro, porque Seguro não parecia ter o brilho de Costa e,
sobretudo, não pertencia à nobreza do PS e da elite política lisboeta. E por isso desvalorizámos o facto de Costa, no dia em que lançou a sua
corrida à liderança, ter quebrado uma promessa e rasgado um contrato. A
promessa fizera-a durante a campanha eleitoral para a Câmara de Lisboa,
garantindo que cumpriria o mandato até ao fim. O contrato assinara-o com o
próprio António José Seguro em nome da unidade do partido e arrancando ao então
líder promessas que este cumpriu.
[…]
Esquecemos depressa demais
que uma das exigências de Costa era que se defendesse a herança de Sócrates, herança que o seu líder parlamentar, Ferro Rodrigues, logo tratou de
resgatar na sua primeira intervenção parlamentar, herança que logo depois
Costa esqueceu, indo ao armário buscar a mais bizarra das samarras para uma
fugidia visita ao preso 44. Foram serviços mínimos, no limite do cinismo,
daquele que foi o seu número dois anos a fio, gesto que no entanto sinaliza que
Costa nem sequer acreditará na inocência do ex-primeiro-ministro, que há muito
sentira o cheiro a esturro mas que nunca dera um só sinal de distanciamento.
Pelo contrário, pois até usou as tropas socráticas para tomar o poder no PS.
[…]
Na
legislatura que terminou o PS só se comprometeu com uma reforma importante: a
descida faseada do IRC para tornar o nosso país mais atraente para o
investimento estrangeiro. Uma descida faseada que duraria, naturalmente, mais
de uma legislatura. Mas mal teve oportunidade, no momento da apresentação do
seu programa económico, o líder que repete a ladainha de que “o PS assume todo
o seu passado” deixou cair esse acordo.
Depois
aconteceu o que aconteceu. Veio a campanha, e a vitória “poucochinha” das
europeias transformou-se numa derrota nada “poucochinha” nas legislativas.
Ouvimo-lo
então dizer, na noite da humilhação e do naufrágio, que não faria coligações
negativas e que esperava que os vencedores, sem maioria, lhe viessem falar pois
a eles pertencia “o ónus de encontrar uma solução de estabilidade”. No dia
seguinte, de uma forma mais articulada e mais clara, o homem que tinha
escolhido para lhe suceder na Câmara de Lisboa, Fernando Medina, disse que este
era o “tempo do compromisso” e de negociar para dar resposta à mensagem que os
portugueses tinham dado na véspera: “conciliar a pertença à Europa e à moeda
única com a mudança nas políticas económicas e sociais”. Não, estas
palavras não foram retiradas da mensagem de Cavaco Silva, são mesmo do
socialista que foi braço direito de Costa em Lisboa.
Mas
de repente tudo mudou. Em vez de preparar uma negociação com a coligação,
António Costa vai à sede do PCP – e reparem neste detalhe: é ele que se desloca
a casa dos comunistas, não Jerónimo que vem ao seu encontro. Fazer o quê? Falar
com o único partido parlamentar que, expressamente, defendeu a saída do euro e
recusou a pertença a “esta Europa”. Seria bizarro se não contrariasse as
expectativas e não representasse unicamente uma forma de António Costa
sobreviver politicamente, para o que necessita de chegar a primeiro-ministro,
custe o que custar, mesmo que com o beneplácito da extrema-esquerda
parlamentar.
[…]
Façam
favor de ir ler (está no site do partido) a declaração do PCP sobre esse
encontro. Reparem que lá ainda se escreve que o programa do PS “não responde a
uma aspiração de ruptura com a política de direita”, pelo que não é por isso
que os dois partidos convergem. Onde eles se entenderam foi na “coligação
negativa” que, três dias antes, Costa condenara no seu discurso de derrota: uma
coligação negativa destinada unicamente a impedir um novo governo da coligação.
[…]
Como
escrevi antes das eleições, era difícil confiar em alguém que nem percebíamos
se acreditava no seu próprio programa eleitoral. Agora sei que é impossível
confiar num político que não hesita em tentar mudar as regras do jogo apenas
para salvar a sua pele.
[…]
Isto
significa que o que está a acontecer não fazia parte do cardápio das escolhas
possíveis, apenas das hipóteses sugeridas de forma sibilina e nunca assumidas
como realistas, por mais que alguns tentem provar o contrário, achando que os
eleitores lêem o subtexto de todos os subentendidos. É por isso que estamos perante algo que a
maioria dos portugueses não deixarão de ver como um golpe palaciano, mesmo
argumentando-se que António Costa nunca descartou taxativamente esse cenário –
na verdade, enguia como é, a sua única preocupação foi não se comprometer e nunca
ser claro, preferindo sempre o nevoeiro à frontalidade e a dúvida à
clarificação.
[…]
A
política não acaba amanhã, ainda falta muito para este jogo se definir, mas uma
coisa já aprendemos: António Costa não é mesmo um homem de confiança, de
palavra dada, de relação segura. Se nunca nos diz tudo o que pensa, também
nunca sabemos o que fará no dia de amanhã. Não sabemos nós, como não sabe
sequer o seu círculo mais próximo, que já começou a esfarelar-se.
Cheio
de auto-confiança, António Costa julga-se sempre mais esperto do que os outros,
mas para já quem marcou o primeiro golo foi Jerónimo de Sousa, pois fez com que
ficasse a depender do PCP, posição em que nenhum líder do PS algum dia tolerou
estar.
Também por isso, falta ainda ver se esse mesmo PS
consente nesta deriva autofágica.»
José Manuel Fernandes
Texto na íntegra em:
http://observador.pt/opiniao/este-homem-nao-e-de-confianca/