Cheguei a pensar ingenuamente que Soares “seria
velado na sede do PS, ao Rato” e que de seguida seria enterrado enquanto eram
lidas exaltadas odes e dadas operárias ou intelectuais salvas de palmas, com vivas
à República. Qual quê. O Rato serviu principalmente como centro
Soares-Multimédia e para recolher plebeias condolências mal escritas em ‘balancetes’
maçudos adquiridos na Papelaria Fernandes e adaptados para o efeito. O Rato
serviu ainda para concentrar os desclassificados que não poderiam ter lugar na
cerimónia principal – e para funcionar como zona afunilada que desse a ideia de
enchente humana ou de multidão agradecida.
Como seria de esperar – para quem conheceu
o personagem e a respectiva entourage
– a Soares estava reservada uma caprichosa cerimónia simultaneamente dispendiosa,
incómoda, desorganizada, desequilibrada e inestética: uma espécie de híbrido entre
um funeral de estado e a ida de uma excursão às barracas de tiro e de algodão
doce da Feira Popular.
Obviamente que se Sá Carneiro por lá
passou, se por lá vai jazendo o nosso bravo Luís Vaz e se lá deram o nó Dom
Duarte Pio e Dona Isabel de Herédia, Mário Soares também teria de ir direitinho
para os Jerónimos – mesmo sendo todo
o Conjunto Edificado consagrado à Santa Custódia de Cristo. Como Soares era “agnóstico”
o protocolo, a família, os espertos e o Patriarcado inventaram umas
esfarrapadíssimas justificações e arranjaram-lhe ternamente câmara na
mui-desatravancada “Sala dos Azulejos” (que queridos…), que é periférica (de
esguelha) à Nave Central da Igreja. No centro depositaram o respeitável
esquife; e logo perto-pertinho um busto verde (!...) da pobre mulher de peitos
secos e achatados envergando o barrete frígio – a República (um artefacto absurdo que deve ter vindo de S. Bento). Pífio, patético.
Mas adiante.
Pequena multidão de reformados e
desocupados arrebanhada em camionetes para emoldurar o acontecimento com
cabeças, óculos escuros e lágrimas mal contidas. Discursos e mais discursos,
palavras e mais palavras; trambolhos políticos como Ferro Rodrigues chateando
com a sua leitura de colegial; a sentida saudade de Costa via satélite; o epitáfio
afectuoso de Marcelo; a apatetada ternura elegíaca do Regime de 76. O caixão
desfilou depois em silêncio pelas ruas feias da Cidade deserta, batidas por uma
luz triste. Ora a bandeira nacional não era legítima e teve de ser substituída…;
a guarda de honra era composta por soldados de alturas desiguais que deram tiros
de salva dessincronizados no tímpano do colega...
Só para rir; Soares deambulou pelo claustro
e pela Cidade transportado por guardas – os tais que “deviam ter desaparecido”;
e escoltado por outros que tais montados em equídeos castanhos usados pelo Corpo de
Intervenção. Gostando de beber e comer bem, de galhofar e de dar lição para
auditórios numerosos e respeitosos, de ocupar tempo e espaço de maneira
arredondada mas açambarcadora Mário Soares pregou assim uma múltipla partida à
Autoridade do Estado, à Igreja, à Fé dos simples (os quais ele desprezava
profundamente) e à própria República, pois Soares sempre se considerou muito
mais importante que o seu ideário republicano ou que o seu próprio País.
Mal na fotografia ficaram o Regime e as
Instituições, que não têm grandeza, princípios, solidez, objectivos, orgulho ou tradição. O
costume.