quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

a procissão




Cheguei a pensar ingenuamente que Soares “seria velado na sede do PS, ao Rato” e que de seguida seria enterrado enquanto eram lidas exaltadas odes e dadas operárias ou intelectuais salvas de palmas, com vivas à República. Qual quê. O Rato serviu principalmente como centro Soares-Multimédia e para recolher plebeias condolências mal escritas em ‘balancetes’ maçudos adquiridos na Papelaria Fernandes e adaptados para o efeito. O Rato serviu ainda para concentrar os desclassificados que não poderiam ter lugar na cerimónia principal – e para funcionar como zona afunilada que desse a ideia de enchente humana ou de multidão agradecida.
Como seria de esperar – para quem conheceu o personagem e a respectiva entourage – a Soares estava reservada uma caprichosa cerimónia simultaneamente dispendiosa, incómoda, desorganizada, desequilibrada e inestética: uma espécie de híbrido entre um funeral de estado e a ida de uma excursão às barracas de tiro e de algodão doce da Feira Popular.
 
Obviamente que se Sá Carneiro por lá passou, se por lá vai jazendo o nosso bravo Luís Vaz e se lá deram o nó Dom Duarte Pio e Dona Isabel de Herédia, Mário Soares também teria de ir direitinho para os Jerónimos – mesmo sendo todo o Conjunto Edificado consagrado à Santa Custódia de Cristo. Como Soares era “agnóstico” o protocolo, a família, os espertos e o Patriarcado inventaram umas esfarrapadíssimas justificações e arranjaram-lhe ternamente câmara na mui-desatravancada “Sala dos Azulejos” (que queridos…), que é periférica (de esguelha) à Nave Central da Igreja. No centro depositaram o respeitável esquife; e logo perto-pertinho um busto verde (!...) da pobre mulher de peitos secos e achatados envergando o barrete frígio – a República (um artefacto absurdo que deve ter vindo de S. Bento). Pífio, patético. Mas adiante.
Pequena multidão de reformados e desocupados arrebanhada em camionetes para emoldurar o acontecimento com cabeças, óculos escuros e lágrimas mal contidas. Discursos e mais discursos, palavras e mais palavras; trambolhos políticos como Ferro Rodrigues chateando com a sua leitura de colegial; a sentida saudade de Costa via satélite; o epitáfio afectuoso de Marcelo; a apatetada ternura elegíaca do Regime de 76. O caixão desfilou depois em silêncio pelas ruas feias da Cidade deserta, batidas por uma luz triste. Ora a bandeira nacional não era legítima e teve de ser substituída…; a guarda de honra era composta por soldados de alturas desiguais que deram tiros de salva dessincronizados no tímpano do colega...
Só para rir; Soares deambulou pelo claustro e pela Cidade transportado por guardas – os tais que “deviam ter desaparecido”; e escoltado por outros que tais montados em equídeos castanhos usados pelo Corpo de Intervenção. Gostando de beber e comer bem, de galhofar e de dar lição para auditórios numerosos e respeitosos, de ocupar tempo e espaço de maneira arredondada mas açambarcadora Mário Soares pregou assim uma múltipla partida à Autoridade do Estado, à Igreja, à Fé dos simples (os quais ele desprezava profundamente) e à própria República, pois Soares sempre se considerou muito mais importante que o seu ideário republicano ou que o seu próprio País.
Mal na fotografia ficaram o Regime e as Instituições, que não têm grandeza, princípios, solidez, objectivos, orgulho ou tradição. O costume.